Repo Reaper: A Surpresa de Halloween nos Mercados e o Fantasma do Basis Trade

AI

No folclore financeiro, o “Reaper” é a personificação do fim dos excessos, “o ceifador invisível” que aparece quando a liquidez some e o sistema começa a cobrar o preço da alavancagem. Assim como o lendário Grim Reaper representa a Morte inevitável, o “Reaper” dos mercados surge silencioso nos becos do repo, nos spreads do SOFR e nas contas do Tesouro. Ele não anuncia sua chegada, apenas ceifa as posições que se alimentaram demais de crédito barato e funding farto. O susto vem sempre no mesmo tom: quando o dinheiro fácil some, o Reaper faz sua colheita, e deixa um rastro de volatilidade, margens apertadas e players exaustos.

(Artigo escrito com auxílio de Inteligência Artificial)

O encanamento que sustenta o sistema

O sistema de liquidez americano funciona como uma rede de canos que transportam dinheiro, colateral e confiança. De um lado, os bancos mantêm reservas junto ao Federal Reserve e recebem juros sobre esse saldo (IORB). De outro, instituições financeiras trocam títulos do Tesouro por cash através do mercado de repo, um mercado que, em tempos normais, é tão estável quanto o encanamento de uma cidade. O principal “usuário” deste sistema são os fundos de money market (fundos de liquidez).

Mas, basta o Fed continuar reduzindo o próprio balanço, operação chamada Quantitative Tightening (QT), ou o Departamento do Tesouro reforçar o caixa do governo, o chamado Treasury General Account (TGA), para indiretamente ajudar ao fluxo de dinheiro mudar de direção. Quando o Dept. do Tesouro emite grandes volumes de T-bills e recolhe dinheiro da economia para dentro da TGA, as reservas bancárias diminuem. O cash que antes irrigava o sistema é drenado, e as taxas de financiamento (como SOFR e TGCR) tendem a subir.

Só que o encanamento não se movimenta apenas por causa do Fed e do Tesouro. Qualquer fonte de tensão financeira pode amplificar a escassez. Bancos regionais sob pressão, por exemplo, forçados a enxugar balanços ou vender Treasuries, reduzem sua participação no mercado, agravando a falta de contrapartes. Outro exemplo são hedge funds ou macro pods, os quais são atingidos quando o custo de financiamento de curto-prazo ou a volatilidade na renda-fixa sobem, e são obrigados a desmontar posições de basis trade, recomprando futuros de derivativos dos títulos do tesouro e vendendo títulos do tesouro à vista, o que amplifica a própria volatilidade.

A dinâmica também atinge instituições fora dos Estados Unidos, o que ocasiona o chamado “fechamento de carry trade”, são episódios como esses que chamam a atenção com o fortalecimento do DXY, o dólar index. A liquidez global também sofre drenagem nessas ocasiões. Por “incrível que pareça” os players estrangeiros precisam recomprar dólares e liquidar posições em ativos de risco quando falta liquidez no sistema. Inclusive, o sistema de “eurodollar” é maior do que o próprio sistema monetário doméstico americano e impossível de ser medido.

O resultado é um efeito dominó: reservas escassas, funding caro, colateral circulando em menos mãos e um sistema que passa, de repente, a operar sob vibração constante, como um cano prestes a romper.

O circuito da liquidez: quando as reservas diminuem, o estresse em repo cresce, as taxas (SOFR/TGCR) sobem e os posicionamentos em futuros mudam.

Como acompanhar o pulso da liquidez

Monitorar esse ecossistema exige olhar para os detalhes certos. Até recentemente, a combinação entre reservas bancárias e o uso do Overnight Reverse Repo Facility mostravam quanto de liquidez sobrava no sistema, mas em 2025 com o fim do ONRRP, ficou mais complicado detalhar a dinâmica pois exige olhar tanto as reservas quanto outras taxas importantes, como o TGCR por exemplo. Quando os volumes de reservas caem, é sinal de aperto. Da mesma forma, quando SOFR ou TGCR passam a negociar consistentemente acima da taxa de referência do Fed, o recado é claro: o dinheiro está ficando escasso.

Há também o saldo da TGA, a emissão de bills e o uso das facilidades permanentes de repo do Fed, tudo isso serve como termômetro do encanamento. Quando o Tesouro eleva sua conta para níveis próximos de US$ 1 trilhão, como ocorreu neste segundo semestre, é dinheiro que sai do sistema bancário e vai direto para o cofre do governo. Cada ponto percentual a mais de TGA é um litro a menos de liquidez disponível para o resto do mercado.

E não seria a primeira vez que o sistema sente o peso dessa drenagem. Em setembro de 2019, quando as reservas bancárias caíram abaixo da faixa de US$ 2,5 a 3 trilhões, o mercado de repo travou da noite para o dia. As taxas de financiamento overnight saltaram para quase 10%, obrigando o Federal Reserve a intervir com operações emergenciais de liquidez. Foi um lembrete traumático de que, quando as reservas caem além de certo “nível de conforto”, o sistema não apenas range, ele “quebra o cano”. Desde então, esse episódio serve como referência silenciosa: abaixo desse limiar, o “Reaper desperta”.

Source: NYFed

Nas últimas sessões de outubro, o TGCR e o SOFR operaram persistentemente acima da faixa-alvo do Fed, com percentis superiores batendo 4,35%-4,40%. É o sinal clássico do Reaper: o dinheiro de curto prazo ficou caro, e o colateral começou a faltar.

O “shutdown” invisível

A discussão sobre o government shutdown pode parecer política, mas também tem efeitos no fluxo do encanamento, apesar de indiretos, podem “ajudar a piorar”. Quando o Congresso demora a aprovar gastos, o Tesouro administra o caixa de forma defensiva, acumulando recursos na TGA e ampliando emissões de curto prazo para garantir fôlego fiscal. Esse processo retira reservas do sistema, reduz a folga de liquidez e aperta o custo de financiamento.

Em outubro, por exemplo, a combinação de grande emissão de T-bills e uma TGA crescente drenou liquidez em plena rolagem de operações corporativas e fiscais, pressionando as taxas de repo. O resultado foi um mini “pânico técnico”: parte do dinheiro “sumiu” das mesas de financiamento enquanto o Fed ainda mantinha o QT ativo.

Source: NYFed Em azul, variação do SOFR nos últimos 12 meses, em cinza a banda superior do EFFR, em laranja, a banda inferior do EFFR. Como explicado acima, momentos em que o SOFR fica mais alto que a banda superior do EFFR, costumam ilustrar falta de liquidez no sistema.

Powell, o QT e o “fogo no parquinho”

No dia 14 de outubro de 2025, Jerome Powell, presidente do Fed, admitiu que o banco central “ainda tem um caminho a percorrer, mas não está tão longe” de encerrar o QT. Foi a forma diplomática de dizer que o Fed reconhece as rachaduras no sistema de liquidez. O simples reconhecimento de que as reservas podem já estar próximas do “nível amplo” (ample reserves) reacendeu o debate sobre quando o QT finalmente acabará.

O mercado reagiu de imediato. As taxas de financiamento, que vinham se sustentando perto do teto da banda do Fed, começaram a sinalizar alívio, mas não sem antes provocar mais uma rodada de volatilidade nos futuros de Treasury. O “fogo no parquinho” veio do fato de que o QT, longe de ser uma operação neutra, está mexendo na base hidráulica do sistema financeiro. Cada título que sai do balanço do Fed é um pouco menos de colateral disponível, e cada dólar drenado emite um novo alerta.

O Basis Trade: o gigante vulnerável

Entre os personagens centrais dessa história está o basis trade, uma das estratégias mais sofisticadas de Wall Street e uma das menos mencionadas, na minha opinião. O mecanismo parece simples: um fundo compra um Treasury no mercado à vista, financia esse título via repo, e simultaneamente vende um contrato futuro de Treasury para travar o preço. O objetivo é arbitrar a diferença e ganhar um spread pequeno, o que exige alavancagem para que o retorno seja recompensador. Enquanto o custo de financiamento for menor que o ganho na diferença entre o preço do futuro e o preço do papel, o trader ganha dinheiro, um carry aparentemente seguro.

Mas essa segurança é ilusória. Quando as taxas de repo sobem, ou quando a volatilidade nas taxas aumenta, o financiamento encarece e o trade começa a sangrar. Com volumes que hoje superam US$ 1 trilhão, o basis trade se tornou grande demais para se mover sem provocar ondas. Quando as margens apertam, fundos alavancados são forçados a reduzir posições, vendendo Treasuries e recomprando futuros, uma combinação que distorce preços, aumenta volatilidade e, em casos extremos, ameaça a estabilidade dos próprios mercados de financiamento, sendo um risco sistêmico crescente e pouco mencionado.

Episódios como setembro de 2019, março de 2023 e abril de 2024 mostram como essa engrenagem pode travar de repente. Todos tiveram um denominador comum: estresses no basis trade gerando mais volatilidade que o desejado, inclusive pelo próprio Fed.

Source: CFTC
Os dados da CFTC revelam o campo de batalha: fundos alavancados (linha verde) massivamente vendidos em futuros de Treasury, enquanto gestores institucionais (azul) seguem comprados. Essa dicotomia é o retrato da tensão entre funding e convicção — o Reaper escolhe quem tem fôlego.

O fantasma da liquidez

A narrativa do “Repo Reaper” mistura técnica e suspense porque ela captura o lado invisível da política monetária. QT, TGA e basis trades, mostrando os fios entrelaçados de um mesmo circuito de liquidez global. Quando um se move, os outros reagem, e o dólar, a taxa de câmbio e os rendimentos dos Treasuries seguem o enredo.

Cada vez mais, o risco dessas operações conduzidas por fundos alavancados e shadow banks fora do perímetro regulatório ameaçam alterar o padrão clássico de comportamento do mercado. O que antes era apenas um ajuste técnico entre Tesouro, Fed e dealers passou a envolver estruturas complexas, com participantes que dependem de liquidez contínua, mas sem acesso direto às linhas de emergência do sistema bancário. Quando esses elos frágeis se romperem, o choque reverberará para dentro do coração do sistema, exigindo — mais uma vez — que o Federal Reserve atue como bombeiro, injetando recursos no mercado de repo para evitar um colapso maior.

Os sinais do estresse não são restritos às mesas de financiamento. Ativos sensíveis à liquidez global, como bitcoin e ouro, provavelmente reagem junto com quedas abruptas, como observado recentemente e em escala muito menor justamente nos dias em que o repo travou, confirmando que o aperto foi real. Ao mesmo tempo, os spreads de crédito high yield se alargaram, refletindo a mesma busca por caixa e o recuo momentâneo do apetite por risco. Quando a liquidez evapora, até os ativos “alternativos” respiram com dificuldade.

O consenso do ano — short DXY — mostrou-se novamente vulnerável ao poder gravitacional da moeda americana em eventos de falta de liquidez. O Reaper pode assumir várias formas: pode surgir nos repos, nas reservas, nos basis trades… mas quem empunha a foice, no fim das contas, é sempre o dólar.

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