A Nova Era da Liquidez: T-Bills e Stablecoins (GENIUS Act)
Com a recente aprovação do GENIUS Act, o que começou como apenas uma mudança técnica na forma como o Tesouro dos Estados Unidos emite dívidas de curto prazo evoluiu para um motor estrutural de liquidez que agora interage com o surgimento das stablecoins digitais. Quando considerados em conjunto, esses fatores têm o potencial de transformar o futuro do dinheiro, redefinir os canais de liquidez e reduzir a necessidade do uso convencional do afrouxamento quantitativo (QE).
Redução de Duration nos Leilões do Tesouro Americano
A dívida de prazo mais curto do governo, os Treasury bills, historicamente costuma “vencer” a cada seis meses (ou mais). Mas, recentemente, a média dos prazos caiu para 139 dias, com alguns títulos vencendo em apenas quatro semanas. O resultado desse “colapso de duration” foi o aumento na frequência de refinanciamento da dívida.
Na estrutura anterior de seis meses “na média”, eram necessários aproximadamente US$ 12,5 trilhões em refinanciamentos anuais, considerando US$ 6,15 trilhões em títulos em circulação. Com os prazos mais curtos de hoje, esse valor sobe para mais de US$ 16 trilhões, gerando basicamente US$ 3,7 trilhões em liquidez extra por ano. Diferente do QE, que expande o balanço do Fed, essa reciclagem de caixa ocorre automaticamente a cada vencimento.
Cada evento de maturidade obriga bancos, corporações, investidores estrangeiros e fundos do mercado monetário a realocar recursos em novos ativos. Bancos aumentam seus empréstimos, empresas recompram ações e fundos injetam liquidez nos mercados de recompra (repo). Como resultado, as condições financeiras têm se mantido mais flexíveis do que a política de juros isoladamente sugeriria, criando uma verdadeira máquina perpétua de liquidez. Esse talvez tenha sido o grande impacto que os principais modelos macroeconômicos não foram capazes de antecipar no período de alta de juros do Fed.
GENIUS Act entra em cena
O Guiding and Establishing National Innovation for U.S. Stablecoins Act, ou simplesmente GENIUS Act, foi estabelecido pelo governo dos Estados Unidos em julho de 2025. Essa lei cria um arcabouço regulatório para as stablecoins, exigindo que os emissores lastreiem totalmente seus tokens com ativos seguros, como Treasury bills e dólares norte-americanos.
O Act define dois níveis de supervisão: emissores menores operam sob regulamentações estaduais com padrões federais mínimos, enquanto aqueles com reservas acima de US$ 10 bilhões ficam sujeitos à regulação federal. Além disso, a lei proíbe os emissores de oferecer rendimento aos detentores de stablecoins, consolidando sua função como instrumentos de pagamento e não como produtos de poupança remunerada. No entanto, ao emprestar ou investir as reservas por conta própria, corretoras e plataformas como a Coinbase ainda podem oferecer “recompensas” em USDC ou moedas semelhantes; nesse caso, o rendimento se origina da atividade da plataforma, e não do emissor da stablecoin.
Simples, mas eficaz na prática, o crescimento das stablecoins gera uma nova fonte de demanda por Treasury bills. Em 2024, a Tether já havia se tornado o sétimo maior comprador de Treasuries, com aquisições de US$ 33 bilhões. Nos próximos anos, emissores de stablecoins poderão reunir trilhões de dólares para investir na dívida pública americana de curto prazo, à medida que a regulamentação se consolide.
AlphaCurrents Crypto da Morgan Stanley de 29 de Julho, imagem referenciando os maiores compradores de USTs em 2024, com Tether aparecendo em sétimo.
Loop de Liquidez Reforçado
O ciclo de retroalimentação fica evidente quando combinamos o GENIUS Act com o colapso de duration do Tesouro:
O Tesouro emite títulos mais curtos. A dívida gira com mais frequência, criando caixa que precisa ser realocado.
Emissores de stablecoins absorvem os títulos. Cada novo token emitido é lastreado por um T-bill, aprofundando a demanda nos leilões.
O dinheiro circula mais rápido. As stablecoins oferecem uma moeda digital disponível 24/7, utilizável tanto no comércio global quanto nos mercados cripto, acelerando ainda mais a liquidez.
Essa dinâmica dupla conecta as finanças tradicionais ao universo digital. A dívida do Tesouro financia os gastos do governo, enquanto as stablecoins envolvem essa dívida em uma forma tokenizada que pode ser negociada instantaneamente em escala mundial.
Impactos no Mandato do Federal Reserve
O papel do Fed certamente mudará como resultado desses ajustes. Desde a Crise Financeira Global, o Fed tem operado sob o modelo de “reservas amplas”, mantendo um balanço patrimonial inflado e pagando juros sobre reservas excedentes. Enquanto sua linha de reverse repo absorvia o excesso de liquidez, o quantitative easing (QE) se tornou a estratégia padrão para estimular os mercados.
No entanto, o mundo moldado pelo GENIUS Act parece diferente. O Fed pode não precisar manter uma presença tão grande se a estratégia de emissão do Tesouro, combinada à atuação de emissores privados de stablecoins, oferecer liquidez suficiente. Os custos de pagamento de juros sobre reservas poderiam cair caso seu balanço encolhesse. Assim, o Fed poderia retornar ao seu papel de gestor de crises, fornecendo apoio por meio da discount window ou de operações de recompra apenas em momentos de estresse, em vez de atuar como a principal fonte de liquidez.
Em tempos normais, o fornecimento diário de liquidez viria do QE do Tesouro, e não do QE do Fed. Ao refinanciar trilhões em títulos de curto prazo e fornecer colateral para emissores de stablecoins, o próprio Tesouro se torna o motor central de liquidez.
Mudança Estrutural
A implicação mais relevante é que o QE talvez não volte a aparecer da mesma forma. Se a emissão do Tesouro e a adoção das stablecoins já estão reciclando caixa em alta velocidade, o Fed não precisará expandir seu balanço de maneira mecânica para fornecer liquidez. Em vez disso, à medida que os leilões do Tesouro e os fluxos das finanças digitais passam a influenciar cada vez mais os ciclos de liquidez, a política monetária pode voltar a se concentrar na gestão das taxas de juros.
Abundância Frágil
Os riscos de refinanciamento aumentam com prazos mais curtos. A liquidez poderia se esgotar em questão de semanas se os leilões do Tesouro falharem ou se a confiança em um emissor relevante de stablecoin se deteriorar. Nesses momentos, o Fed teria de intervir, ressaltando seu papel cada vez mais como “amortecedor de crises”, e não como motor principal do sistema.
O Caminho Adiante
Juntos, o colapso de duration do Tesouro e o GENIUS Act criam um sistema monetário paralelo: um ambiente em que trilhões de dólares em dívida pública de curto prazo passam a servir de âncora tanto para instituições financeiras tradicionais quanto para economias digitais tokenizadas.
Esse arcabouço, na prática, institucionaliza uma espécie de “QE do Tesouro”, permitindo que os Estados Unidos operem com déficits maiores sem depender da expansão do balanço do Fed. O custo, porém, é amarrar ainda mais a estabilidade financeira ao funcionamento contínuo dos mercados de bills e dos ecossistemas de stablecoins, mesmo que isso reduza a dependência do QE convencional.
Eventos recentes demonstram até que ponto essa abordagem já avançou. Em uma medida histórica, o Tesouro norte-americano realizou no início de setembro o maior leilão de curto prazo já registrado, vendendo US$ 100 bilhões em bills de 4 semanas. Ao mesmo tempo, tem recomprado títulos de prazo longo, o que gera uma emissão sem precedentes na ponta curta da curva e, essencialmente, retira oferta do segmento de 10 a 30 anos. Não se trata de um Yield Curve Control (YCC) formal — quando o banco central fixa tetos explícitos para os rendimentos e compra títulos ilimitadamente para impô-los, como o Japão já fez. Mas funciona como uma espécie de YCC leve: o Tesouro se apoia em bills de curto prazo e baixo custo para captar recursos e, em seguida, usa os recursos para estabilizar a ponta longa.
Os benefícios são claros: operações mais suaves na parte longa da curva e redução dos custos de financiamento no curto prazo. O risco de rollover é a contrapartida igualmente óbvia. O governo precisa refinanciar continuamente mais de US$ 100 bilhões em dívida ultracurta que vence a cada quatro semanas. Se as taxas caem, a estratégia é indolor. Se sobem, o choque de custo é imediato.
Sob essa perspectiva, os Estados Unidos estão, neste momento, experimentando um tipo de engenharia de gestão da dívida que provavelmente caracterizará a próxima era da liquidez. O GENIUS Act adiciona mais uma camada, ao criar novos canais de transmissão de liquidez e institucionalizar a demanda das stablecoins por T-bills. Considerados em conjunto, esses fatores demonstram que as autoridades fiscais e a infraestrutura financeira digital terão um papel cada vez maior na condução da liquidez global, indo além do protagonismo exclusivo dos bancos centrais.
Portanto, o futuro da liquidez não será escrito apenas nos corredores do Federal Reserve. Ele será moldado pelas reservas de stablecoins, pelos leilões do Tesouro e pelas carteiras digitais de milhões de pessoas ao redor do mundo. As bases fundamentais das finanças contemporâneas estão sendo redesenhadas pelo encontro dessas forças — de forma mais rápida, mais global e, possivelmente, mais delicada do que no passado.
Imagem do resultado do Leilão de 4 de Setembro do Tesouro Americano, histórico com U$ 100B em títulos de 4 semanas de dívida.