Um trilhão no Reverse Repo? Como funciona essa dinâmica. (Parte 2)

No artigo anterior (Parte 1), explico a dinâmica que envolve o “repo” e a importância dos players envolvidos. Neste artigo, Parte 2, explico a ordem de fatores que levou o tema a adquirir maior importância no contexto atual. De forma simples, explico como o ON RRP se tornou uma ferramenta crucial para controlar o “piso” da taxa de juros, e, de quebra, evitar uma hecatombe nos fundos de Money market além de “drenar” um excesso de liquidez em depósitos (causado pela política monetária de Quantitative Easing, em paralelo a política fiscal de distribuição de cheques do governo como medida de auxílio do governo americano durante a pandemia).

Ordem dos fatores:

Em fevereiro de 2021, o “governo americano” distribuiu em torno de 1.1 trilhão de dólares para a população através do envio de cheques. Ou seja, os depósitos saem do balanço do Tesouro (TGA) e vão para o balanço dos bancos comerciais.

Apenas para complementar a lógica do processo, quando o Tesouro americano precisa se “endividar”, o TGA vende através de leilões títulos de dívida, os quais podem ter vencimentos curtos (T-Bills), médios (T-Notes) ou longos (T-Bonds). Quando ocorre o leilão, o mercado “compra essas dívidas” (site de leilão do tesouro aqui) e entram dólares no balanço do TGA, portanto, para o Tesouro americano, os dólares são ativos, mas, para o banco central que cuida do balanço do TGA, ou seja, o Fed, o depósito é um passivo.

Portanto, da próxima vez que você ler alguém falando que o Fed “imprime dinheiro”, você poderá entender a dinâmica do processo e ver que o ativo do Fed “infla” porquê a nota de dívida do TGA é um ativo para o Fed (o T Bond, por exemplo), ao passo que no balanço do Fed, o passivo (o cash, ou a moeda) tende a subir em conjunto com o aumento no lado do ativo. (o cash gerado no leilão da venda dos títulos do tesouro do TGA entram ali automaticamente até serem gastos).

Ou seja, o dólar da venda dos títulos entram como ativos para o TGA e passivo para o Fed...é justamente esse “cash” que o congresso usa para gastar, como por exemplo num infrastructure deal, como o que está sendo discutido atualmente. (você pode comparar o processo com a sua conta bancária, para o seu banco, o seu saldo em depósito é um passivo, para você é um ativo, ao passo que o seu empréstimo é um passivo para você e um ativo para o seu banco).

Balanço do TGA em dezembro de 2020. De 350B em dezembro de 2019 para 1.8T em 12 meses.

Balanço do TGA em dezembro de 2020. De 350B em dezembro de 2019 para 1.8T em 12 meses.

Agora, imagine que de repente o governo autoriza o envio de 1.1 trilhão de dólares em cheques para a população. O que acontece? Esse dinheiro sai do ativo no balanço do TGA e vai para o passivo no balanço dos bancos comerciais. Porém, existe um problema aí....os bancos são restritos a métricas de controle de balanço impostas pelo Basel, regulação global pós-crise de 2008. Não podem comportar todos estes depósitos, caso contrário, o passivo nos balanços fica muito alto e não tem uma forma eficiente de resolver o problema que não seja ou deixando estes depósitos no balanço do Fed no IOER, ou, simplesmente recusando os depósitos.

Ou seja, voltando a lógica do mercado de repo e das ferramentas de controle do range da taxa de juros efetivas, temos um problema....os depósitos são tantos que o mercado começa a negocia-los próximos ao piso (0%) com alto risco de entrar em território negativo. E, se entrarem em terreno negativo, inicia-se um outro problema...nos fundos de Money market.

Eis que surge um “facility” já existente desde 2014 e esquecido por alguns anos...o ON RRP, Overnight Reverse Repurchase Agreements. Isto é, o Fed pode fazer uma recompra de ativos reverso, na prática, o Fed pega emprestado “no overnight” os contratos de repo e ainda paga juros para quem deixar os mesmos em seu balanço. Ou seja, o Fed agora pode alterar os incentivos dos players e controlar o piso da taxa de juros pagando prêmios no ON RRP acima do IOER e controlar o range do EFFR. Detalhe importante, as GSEs podem receber os juros no ON RRP (que não podiam antes no IOER).

Na prática o resumo é: para controlar esse “piso” o Fed usa o ON RRP, liberando contra-partes a ganhar um spread em cima do IOER, incluindo GSEs. Os mm funds que estão “sofrendo” com taxas quase negativas em um mercado que tem incentivos para tradar depósitos abaixo do piso do EFFR são quem mais aproveitam do ON RRP junto com a Fannie Mae e Freddie Mac, sendo quase que os compradores exclusivos de ON RRP nos leilões.

Quando o mercado de ON RRP foi criado em 2014 o limite para os participantes era de 30 bilhões de dólares por leilão, desde março de 2021 o Fed aumentou para 80 bilhões.

O Fed sabe que existe um risco de estabilidade financeira no ON RRP porque um uso muito amplo e repentino da estrutura pode amplificar flight-to-safety em períodos de financial stress. Em outras palavras, se o Fed precificar de forma incorreta o spread pago no ON RRP, o remédio poderá ter o efeito oposto, pois em cenário de risk-on existirão incentivos para deixar dinheiro com o Fed em vez de arriscar com bancos e fundos frágeis, mas, no atual contexto, funciona para resolver o “problema”.

Com o ON RRP funcionando, o Fed consegue comportar as recompras mensais de MBS (títulos de mortgage) das GSEs a fins de manter as taxas de mortgage baixas, por exemplo, e, ainda arrumam em conjunto uma solução para o problema de envio de cheques da política fiscal que infla rapidamente o passivo dos bancos comerciais. De um lado drena a liquidez do QE da política monetária, de outro, evita que as taxas de juros de curto-prazo caiam abaixo do piso de 0%, segurando os Money markets.

Outra questão a ser acompanhada é a queda na colocação de novas dívidas do Tesouro de vencimentos mais curtos, ou seja, com taxas de juros mais baixas, o Tesouro parece preferir “esticar” suas dívidas para períodos mais longos do que vender T-Bills (que vencem em menos de 1 ano). Ou seja, o TGA (da Yellen) tem feito muito mais leilões de T-Bonds do que T-Bills, dificultando ainda mais o trabalho dos Money market funds em achar ativos e deixando o ON RRP mais importante que nunca...claro que o objetivo de colocar leiloes de títulos longos é muito mais orientado pelo fato da preferência em se endividar no longo prazo e aproveitar de taxas reais de juros negativas do que criar um problema fiscal no curto-prazo para o governo americano...

Se nada for feito, os bancos terão até o fim de 2021 que reduzir seus balanços para evitar cair fora de métricas de capital requirements que gerariam multas. A venda de depósitos para os mm funds é uma solução até agora simples e efetiva. Os mm funds compram os depósitos descontados e estacionam no ON RRP para arbitrar “grandes” 0.05% de spread. Esses 0.05% já trouxeram mais de 1 trilhão no final de julho de 2021, em apenas dois meses...é algo a se pensar a respeito da fragilidade do mercado de crédito e da falta de colateral em uma praça cheia de liquidez.

Se existe uma conclusão inicial e indireta que podemos discutir seria: estaria o Fed está pegando empréstimo “grátis” dos mm funds para pagar pelo aumento de balanço de 2020? Nada como ser o BC da reserva global, não?

Balanço do ON RRP em 29 de julho de 2021, aproximadamente 1,04 trilhões de dólares. Você pode acompanhar neste link.

Balanço do ON RRP em 29 de julho de 2021, aproximadamente 1,04 trilhões de dólares. Você pode acompanhar neste link.


Se você gostou deste conteúdo recomendo acompanhar o blog de um dos maiores especialistas dessa dinâmica do “encanamento” do mercado financeiro, o Joseph Wang (conhecido como The Fed Guy). O link do blog dele é este aqui: https://fedguy.com/. Tive o prazer de bater um papo com o Joseph Wang recentemente junto ao meu amigo Doc Trader.

Conteúdo deste artigo em conjunto com o meu amigo Doc Trader.

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